Lar: um espaço em eterna transformação
Em sua coluna de estreia no site de Casa e Jardim, o arquiteto Daniel Bolson discute como promover uma identificação real com a casa
Percebo que as pessoas cada vez mais buscam uma identificação real com seus lares. Fazer uma casa bonita hoje em dia parece ter se tornado algo mais fácil. Temos várias referências, opções, variedades e tendências para diversos bolsos e perfis. Entretanto, criar um espaço que realmente se relacione com a personalidade e o cotidiano de seus moradores é o que move a roda da boa arquitetura.
Essa semana falávamos no escritório sobre nossos desejos de quem sabe um dia termos um pátio para que pudéssemos ter um pequeno jardim, poder colocar uma rede na rua, um lugar com sol para estender as roupas, para receber os amigos em um domingo. Dali a pouco chegamos à conclusão que de certa forma a contemporaneidade nos involuiu em alguns sentidos dentro de casa: antigamente, todo mundo tinha um quintal, fosse ele maior ou menor, um espaço de respiro na casa, de contato com ar, o clima, o lado externo. Esse desejo segue, até hoje, na forma de varanda, pátio ou sacada, maiores ou menores. Se existirem e o tempo estiver bom, todos vão querer estar por lá.
A casa nada mais é do que uma base para a construção de memórias do dia a dia e tem que evoluir junto com isso, com as lembranças de seus moradores, suas vivências criadas também nesse espaço. O lar precisa respirar, fluir, permitir novos arranjos, poder mudar, ter flexibilidade. Dessa forma, sempre me pareceu sem sentido a ideia de ambientes completamente planejados, pensados, super aproveitados ou extremamente sob medida. A casa precisa também de paredes em branco, espaço para estacionar uma bicicleta, receber itens que estão de passagem. Permitir arrastar alguns móveis para uma repentina festa, para as crianças brincarem ou para experimentar algo novo que peça uma configuração diferente de espaço.
Projeto de Daniel Bolson tem estante com pé-direito duplo que abriga coleção de livros e os pertences decorativos dos moradores (Foto: Divulgação)
A sensação de lar vai além da porta para dentro das nossas casas e apartamentos, se dá na boa relação também entre espaço público e privado. Ela está presente na vizinhança, no cuidado com o hall do prédio, floreiras, calçada, os canteiros da quadra... Ser parte desse cuidado e manutenção certamente tece um espaço muito mais harmônico e seguro para quem vive lá. Tenho alguns primos que moram em uma área da cidade quase totalmente residencial e volta e meia vem me questionar sobre como é curioso eu morar no centro da cidade, onde há muito comércio, circulação de pessoas. De alguma forma, na leitura deles, um local de certo caos e insegurança.
Ledo engano. Moro numa rua arborizada, de onde em 15 minutos de caminhada consigo chegar aos parques da cidade, à Orla, aos museus, ao transporte público e metropolitano. Onde às nove horas da noite vizinhos estão conversando na rua, indo ao supermercado a pé e crianças estão brincando na rua. Tudo isso grudado no fervo do centro de uma capital, acredite. Existem problemas, sim, mas ainda assim me parece ser uma combinação que dá mais certo.
O conforto do cotidiano de uma casa se dá em linhas que, muito mais que tendências ou modismos estéticos, acontece ao conectar o usuário com o espaço, para além inclusive do lugar privado, tendo uma visão de onde se está inserido, do lado de fora. Gerar um senso de apropriação do local, refletir sua história, personalidade, humor, relações e memória. Descobrir os elementos que constituem a morada de cada um é um processo que me parece ser o mais importante em um projeto: o de identificação e pertencimento a um lugar. Aí sim temos um lar.
Via: Casa e Jardim